quinta-feira, 29 de março de 2007

Conceição Paganele, uma cidadã brasileira

Moradora da periferia de São Paulo cria associação em defesa das crianças em situação de risco e se destaca durante o 2º Encontro de Educação Social, em Maringá

Marcelo Bulgarelli

Equipe O DIÁRIO

Conceição Paganele, cidadã, moradora da periferia de São Paulo. Ficou viúva aos 25 anos com cinco filhos. Seu sonho era criá-los e formá-los, apesar das dificuldades financeiras. Uma família feliz até que o filho mais novo, aos 14 anos, se tornou um dependente químico da maconha e, mais tarde, de crack.

Seu objetivo foi proteger o caçula. Sem perceber, passou a proteger muitas outras crianças, muitas outras mães. Hoje, conhecedora de seus direitos, preside a Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco, Amar.

Luta contra a arbitrariedade e a ilegalidade de instituições como a Fundação do Bem Estar do Menor, a Febem de São Paulo, onde o filho ficou internado. Mediou rebeliões e denunciou maus tratos.

No ano passado, a Amar recebeu o Prêmio Nacional dos Direitos Humanos do governo federal. Em março de 2002, Conceição foi capa da conceituada revista “Caros Amigos”. Na semana passada, se destacou durante o 2º Encontro Nacional de Educação Social, realizado em Maringá.

Como surgiu a Associação de Mães e Amigos das Crianças em Situação de Risco, Amar?

Surgiu pelo envolvimento de nossos filhos nas drogas e em seguida veio o ato in-fracional e a Febem.

Como a senhora classificaria a Febem?

Como eu classificaria? Aquilo que jamais deveria ter existido. A Febem de São Paulo é instituição que leva tantos valores em dinheiro, que custa tão caro ao Estado e ao invés de res-socializar, de recuperar, de tratar, ela piora a situação. O jovem sai de lá muito pior do que entrou. Então ela deveria ter um fim. Não sei por que existe ou teima em existir.

Desde quando a senhora teve contato com a Febem, chegou a conhecer a realidade de ou-tras instituições?

A internação é algo muito serio. O trato no Brasil ao jovem infrator da camada menos favorecida da sociedade já é desprezível. Já é de exclusão. O que a gente percebe é isso. Quem vai hoje para a Febem, quem hoje está atrás do sistema prisional, são pessoas populares, da classe popular. Então, parece que não muda no Brasil essa questão, parece que não muda no mundo... São os menos privilegiados. Esses são os mais sofridos. A minha grande preocupação é que enquanto a gente se omitir, a gente se calar diante dessa situação, nós só vamos gerar a violência. Quando o adolescente infraciona, quando ele violenta, ele está sendo violentado. Ele só está respondendo tudo aquilo que recebe.

O que leva o jovem ao vício?

A falta de perspectiva de vida.

Falta de auto-estima?

Auto-estima lá embaixo. Hoje o menor da periferia, o jovem , o adolescente, não tem garantias no mercado de trabalho, de uma sobrevivência melhor. E tem o abandono total. Os promotores de Justiça de São Paulo elaboram um boletim de ocorrência, um modelo elaborado pelo promotor de Justiça da Vara da Infância. Quando menino desobedece algumas regras dentro da escola, será feito aquele boletim de ocorrência e encaminhado para lá, levado pra Febem. Isso é um absurdo.

E tem quem quer reduzir...

Tem quem quer reduzir a idade penal. É mais uma aberração, uma estupidez que candidatos mal intencionados fazem política em cima disso. Ao invés de investir na escola, ao invés de exigir as políticas públicas de atendimento a essas pessoas menos despreparadas, eles querem aumentar o grau de violência, engrossar mais as filas no sistema prisional que não recupera, não resolve. É pura hipocrisia e enganação pois eles não podem fazer essa alteração (na lei).

Ser jovem de uma camada popular é muito difícil. Você convive numa sociedade de ex-clusão e ao mesmo tempo essa mesma sociedade o incentiva ao con-sumo. E você tem o di-reito de consumir, mas não tem condições. Isso cria uma expectativa terrível para os jovens.

Sim. Uma situação de conflito. Agora mesmo estou vendo as preocupações de todos os estados e municípios, as medidas de proteção para as crianças de zero a 14 anos. E 14 anos pra frente solta, há um momento de conflito do jovem. É o momento mais conflitante. E aí o tráfico, como é o caso de São Paulo, está aí em todas as esquinas. Eu costumo falar que ele estava na esquina da minha casa, passou pelo portão, entrou pela minha sala e hoje está no meu travesseiro. Porque eu tenho um filho dependente químico. E chamo muita a atenção da população, das mães e da sociedade de modo geral. Assim como ela (a droga) entrou dentro da minha casa, pode entrar no travesseiro de qualquer um se a gente continuar de braços cruzados. Porque essa questão de dar cesta básica, bolsa escola, mil bolsinhas, e não investir e preparar o ser humano, não investir na pessoa para que ela se torne cidadã e conhecedora de seus direitos, isso também não resolve. Vamos parar de hipocrisia e de dar esmola. A população brasileira não precisa de esmola. Precisa é se preparar para o enfrentamento com a crise social. Precisamos estudar. E quando eu falo em estudar, não é estudar cinco, seis horas num banco de escola. É estudar no conhecimento de cidadania, de direitos e deveres. É isso que a gente precisa.

E conhecer o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

Conhecer o ECA, a própria constituição. Conhecer o que é ser cidadã. Tenho direitos e deveres, então exijo o que é meu. Tenho direito de ser respeitada, de trabalhar, ir e vir. Mas eu quero os meus direitos garantidos. Não aceito ticket de leite ou cesta básica.

A senhora se aproximou muito da Febem devido ao seu filho, dependente quí-mico. Esses problemas ge-ralmente acontecem com os rapazes. E as moças?

Eu tenho algumas meninas em situação de risco, mas não na prostituição. E é muito pequeno o número de moças em atos infracionais. O que mais temos é meninas sendo usadas no trafico de drogas.

Servindo de “aviões”?

Elas servem. Geralmente quando você conversa com uma mocinha e ela diz que trabalha à noite num barzinho, ela está traficando. Está sendo usada.

Na periferia das grandes cidades, as moças gostam dos rapazes que estão no tráfico. Parece que existe uma certa áurea de herói. Quer namorar aquele modelo...

É que vivemos numa sociedade onde você deve ser bom. E bom de tudo. Tem que chegar na frente, não importa como. E essa questão do poderoso, do cara que matou, ele se torna herói na periferia. Ele acaba de matar e os outros o carregam no colo. E ele passa a exercer esse fascínio nas meninas. É o “poderoso” que a imprensa passa, a tevê mostra. Não existe solidariedade. Existe vencer na frente e dane-se o resto.

E a polícia? Em certas si-tuações os marginais tratam melhor a comunidade do que a própria polícia.

Infelizmente. Eu tenho muita tristeza. Tenho um trauma com a polícia. Me maltratou, me agrediu. Quando vejo uma viatura de polícia, eu odeio. Meu pensamento inicial é de raiva. Na mesma hora eu me reponho: “Ai meu Deus, é um homem numa situação de risco total”. Mas a polícia deixa muito a desejar. É muito violenta , não respeita as pessoas. Quando se aproxima, se aproxima desrespeitando.

E geralmente isso acontece com as pessoas mais pobres. E a maior parte desses po-liciais veio justamente dessa mesma camada social.

São pobres com os mesmo problemas do que eu. Mas parece que com aquela farda deixam de ser seres humanos e passam a ser como monstros. A polícia chegou a me xingar, a me tratar com desprezo. “Seus filhos todos são bandidos?”. Isso num momento difícil, quando eu estava lidando com as drogas do meu filho. E ele preso. Eu estava ali, não concordando com aquele ato infracional de roubo e a polícia entra cheia de arma, engatilhando no meu portão e depois dizendo que todos da minha casa são bandidos e se eu iria passear numa hora daquela. Eu estava na minha casa e ainda me perguntam se eu ia passear.

A senhoras tem quantos filhos?

Tenho seis. Cinco do meu casamento e um adotivo de oito anos.

E o único quer deu problema foi o caçula, o Cássio? Como foi educar os demais? Por que isso aconteceu?

Quando eu fiquei viúva, o Cássio era o caçulinha, tinha três anos. Os outros eu ainda consegui acompanhar um pouquinho na escola, ia levar, buscar. Mas com Cássio foi diferente. Eu saía pra trabalhar e o deixava sozinho, sendo cuidado pelo irmão de oito anos. Não tive tempo pro Cássio. Não teve creche, ficou na rua, aos cuidados dos outros irmãos. E acho que essa falta materna, paterna, fez muita falta pra ele. Ele tem uma carência muito grande. Pra você ter uma idéia, ele me procura 24 horas do dia. Quando ele está em casa e eu trabalhando, me liga a todo instante. Me pergunta “como você tá? Que horas você vem?”. Acho que diante dessa carência, ele buscou uma fuga nas drogas. E não acho que eu falhei. Quem falhou comigo foi o próprio Estado, a comunidade. Porque eu não tinha outro jeito. Eu tinha que trabalhar. Quantas mães têm que trabalhar e deixar seus filhos sozinhos? A gente briga pra que haja medidas de amparo social, quer tenha creche, escola de qualidade e que essas mães tenham melhores salários para poderem viver melhor.

Quando seu filho foi pra Febem, a senhora achou que ele estaria protegido. Afinal, ele estava na “Fundação do Bem Estar do Menor”. Mas o Estado não cria nenhum outro mecanismo para acolher essas crianças.

Quando ele chegou na Febem, a situação dele já era muito perigosa. Ele corria risco e oferecia risco. Eu procurava ajuda na comunidade, procurei até o Ministério Público da Vara da Infância em São Miguel. Eu falava pro promotor: “Meu filho oferece risco. Ele se droga, pega arma emprestada e ele sai pra roubar. Pode tirar a vida de qualquer ser humano”. E roubando carros de pessoas pobres, de quem fez consórcio e passou anos pagando pra conseguir. Isso não era justo. Então, eu queria a proteção de alguma forma. E eu não consegui. E na hora que rouba, ele vai preso, pra Febem. E lá, eu achei que ele teria o atendimento médico, psicoterapêutico, psiquiátrico... A dependência do meu filho é muito séria. Já chegou um momento dele pedir pra amarrar ele dentro de casa.

Ele tem consciência dessa dependência?

Hoje a gente trabalha bem com isso. Mas é muito triste. Imagine você ter um filho com 15 anos e ele pedir pra você amarrar ele para controlar aquele monstro dentro dele? Aquela vontade terrível de usar drogas. Como você amarra, pega uma corrente e prende seu filho dentro de casa? Eu não queria. E eu pedia ajuda. E não tive ninguém que me ajudasse. Quando ele estava dentro da Febem, achei que lá eles iriam fazer o tratamento que ele precisava. Ele estava na mão do Estado, vinte e quatro horas. O Estado não o recuperou por que não quis. O saldo que a Febem me deu foi de uma rebelião em que ele tentou uma fuga. Meu filho não tem calcanhares. Tem platina. Ele hoje tem deficiência física. Isso foi o que o Estado conseguiu me devolver. Não melhorou a situação, nem dos outros meninos. Agora, com muita dificuldade, a gente tenta caminhar com os adolescentes, levando eles pra associação, pra escola. Mas tudo é muito difícil, pois a nossa associação não tem recursos. É uma situação de estremo sofrimento... Mães em desespero, em depressão... Uma situação que o Estado não resolve.

Em determinado momento da sua vida a senhora pensou que estava sozinha. Quando olhou em volta, viu que tinha outras mães. Ali a senhora viu es-perança ou consolo?

Esperança. Eu não estava sozinha, tinha esperança de torná-las cidadãs, de tornar a luta maior. Falava pra elas que se a Febem continuar da forma como está, nós precisamos nos preparar e tomar conta daquilo. Mas parece que a Febem de São Paulo só vai resolver o problema no dias em que as famílias se prepararem e assumirem. Porque são os filhos dessas mães que estão lá. Estão saindo piores do que entraram (Emocionada, Conceição respira fundo e faz uma pequena pausa).

E o Cássio? Tem quantos anos?

Está com vinte. E eu aprendi muito com ele. E aprendi muito com as drogas também. A gente pensa que não... Um dia eu estava triste e meu filho mais velho disse assim, quando Cássio foi preso: “sabe mãe. A gente pensou que os problemas sempre aconteciam na casa dos outros, mas acontecem na nossa também”. O problema estava na nossa casa. E o próprio Cássio me escreveu na semana passada: “você é uma grande heroína”. A gente não tem mais segredo.

Como está ele?

Num presídio em Tre-membé. Não tem atendimento nenhum. É eles por eles mesmos. Mas não tem espancamento. E na Febem tem.

Está preso por quê?

Roubo de carro. Foi a ultima recaída dele. Esteve um ano e meio em casa com a gente. Depois que recaiu, eu achava que ele ia morrer.

E a senhora não é bem vinda na Febem.

(risos) Ninguém que trabalha com a questão da criança e do adolescente é liberado para entrar. Inclusive teve uma rebelião no ultimo final de semana e nós fomos lá, com duas mães, e só conseguimos ver os meninos. Tava totalmente destruída a unidade. No dia seguinte, foi a Comissão de Direitos Humanos que também não conseguiu entrar.

E o Estado nunca se posi-cionou, mesmo depois que a senhora ficou conhecida na mídia?

Eles desmentem. Diz que são pequenos focos de violência, que nada disso existe, que tudo é totalmente controlável. Interessa alguém em manter a Febem dessa forma em que está. Um jovem adolescente, hoje, custa para o Estado entre mil e oitocentos a dois mil reais. Com esse dinheiro eu pagaria um colégio fora do Brasil...

Ou um tratamento.

A gente vê os meninos dormindo no chão. Na UAI, uma Unidade de Atendimento Inicial da Febem, tem capacidade para 63 meninos e lá cabem quatrocentos e cinqüenta.

Assim, eles têm o direito de fugir.

Mas lá eles não fogem. Não tem como. Não pode olhar pros lados e nem se coçar. E nem tem como coçar a sarna, sem se mexer.

E os seus demais filhos? Que idade eles tem?

Cássio, o caçula, tem 20 anos. Viviane tem 21, o Teo 23, Frank 24 e a Valéria 25. Todos estão casados.

E quantos netos?

Dez netos. O próprio Cássio tem duas filhas que eu crio. A menina de quatro anos só fala no pai , amanhece falando no pai dela. Ela cria a bonequinha dela, eu sou a avó da boneca, e tem o pai que tá trabalhando. Em todo o momento da vida dela, ela traz o pai. Isso é um conflito muito grande pra gente. E esse pai faz muita falta. Eu falo com ele sobre isso. E quando ela vai visitar (o pai na prisão) e quer trazer o pai dela junto? E a cadeia toda chora. marcelo@odiario-maringa.com.br

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