quinta-feira, 29 de março de 2007

Prostitutas querem direitos respeitados - 2003

Portaria do Ministério Público revolta prostitutas de Maringá; elas organizam uma associação para garantia dos direitos constitucionais

Marcelo Bulgarelli/Equipe O DIÁRIO

“Polícia vai cadastrar as prostitutas”. Esse foi o título da matéria publicada em O DIÁRIO no domingo passado e que está correndo o Brasil por meio de Organizações Não Governamentais (ONGs) de defesa dos direitos humanos. A portaria prevê o fim do direito de ir e vir de prostitutas, travestis e de profissionais do sexo em geral.

O documento saiu de uma reunião, ocorrida em novembro, entre representantes do Ministério Publico (MP), Policia Civil e Militar em Maringá. Para os que defendem os direitos humanos, a portaria é a institucionalização de uma verdadeira “ limpeza social” devido ao cunho “fascista”.

Surpreendentemente, uma representante da principal parte envolvida resolveu se manifestar. É a cidadã, contribuinte, consumidora, mãe e avó, Arinéia Maria Martins Gonçalves, 37. A mesma carta enviada a O DIÁRIO foi também remetida para ONGs de todo o país e também ao Ministério Público.

Em entrevista a O DIÁRIO, Néia, como é chamada, fala de sua revolta contra a portaria e conta um pouco da história dela. Ela é uma das principais coordenadoras de uma associação de defesa dos direitos dos profissionais do sexo. Também luta por uma cadeira junto ao Conselho de Defesa dos Direitos da Mulher. Sem medo de aparecer.

Como você começou na profissão?

Eu acredito que toda profissional do sexo tem algo que vem desde infância. Sou filha de pais separados, de família humilde, pai alcoólatra...Minha mãe, ainda muito jovem, ficou com três filhos, sem recursos. Desde cedo eu aprendi que para se ter alguma coisa na vida, você deve dar algo em troca... Normalmente a menina que entra na prostituição ela tem necessidade de se segurar em alguma coisa. Daí, o alcoolismo é o meio mais fácil. É difícil existir uma prostituta que não fuma, que não bebe e tem uma que usam outras coisas. Mas isso não faz da gente pessoas desonestas, uma vez que arcamos com nossas responsabilidades... No começo da minha profissão, foi uma necessidade. Não tinha filhos, não tinha estudos. Quando entrei para a prostituição, foi em 91. Meu ex-marido era alcoólatra também e eu não tinha como cuidar das crianças. Me separei de vez e tive que tomar uma atitude. Vim pra rua mesmo, tinha que acabar de cuidar das crianças e dar pra eles um futuro diferente do meu, com escola, uma casa, um amparo de verdade...

Como foi sua primeira relação?

Péssima (risos). O primeiro é sempre o mais difícil. Embora você sabe que precisa daquele dinheiro, o remorso para com você mesma é muito grande. Na realidade, sabe que aquilo não é o que você quer pra você. Hoje eu lido com isso muito bem. Faço a minha profissão porque quero. Poderia simplesmente parar. Mas se hoje eu luto pelos direitos das prostitutas, é porque sei o que passei. É uma opção minha.

Você é uma pioneira nessa bandeira. Deve ser difícil.

Difícil sempre é. Veja a reportagem do jornal. Estão simplificando a gente como prostitutas. É prostituta, não é mãe, não e mulher, não é cidadã. Se resume no fato de ser prostituta. Complicado porque a gente também não tem apoio. Na hora em que vou votar, eu sou cidadã. Na hora que em que preciso do apoio de quem ajudei a eleger, eu sou só prostituta. Acaba que a gente fica reprimida, vem pra rua com medo, mas não tem como parar. Parte das meninas de programa são mães e pais de seus filhos, são donas-de-casa, tem responsabilidade. Não tem como parar.

Como é a noite em Maringá?

É assombrosa. De repente, você sai sabendo a hora que sai sem saber a hora que volta. Não há segurança de lado nenhum. Até um cliente pode se tornar agressivo, pode se tornar seu inimigo.

Qual o pior momento que você já passou?

O pior foi quando meu pai estava doente e seis meses antes dele falecer eu estava desesperada. Precisava de dinheiro. Entrei num carro e o cara me deixou no meio do mato, sem saída. A sorte é que aqui, quando a gente entra num carro, a menina que fica guarda o documento, o dinheiro. Caso contrário, eu teria ficado sem nada.

A reportagem de O DIÁRIO representou a gota d’água sobre o que a sociedade acha de vocês?

Com certeza. É uma hipocrisia muito grande. A sociedade taxa as meninas da rua como prostitutas, como vadias, quando a gente sabe que na sociedade há muitas que freqüentam grandes hotéis e são chamadas de acompanhantes de executivos. Enquanto a gente freqüenta pequenos hotéis que dão emprego pra muita gente, somos consideradas a puta, a vagabunda e o hotel um prostíbulo. Então, chega. Cansamos.

Você está organizando uma associação das profissionais do sexo...

Na verdade já estamos muito mais organizadas do que o pessoal pensa. Quando é pra escolher em quem a gente vai votar, a gente se reúne, procura o que é melhor pra nós. E tem gente que vai pro jornal, faz o que quer e acha que a gente fica sem ter como se defender. Mas nós temos como nos defender e não vamos baixar a cabeça de maneira nenhuma. Doa quem doer. Por que em nós também dói ver no jornal que somos consideradas pessoas desordeiras, um perigo para a sociedade. Será que realmente somos um risco ou a sociedade é um risco pra nós?

E depois dessa portaria, o que vocês pretendem fazer?

A gente não vai parar. Tive agora um contato com a Carmem Lúcia (socióloga e prostituta, uma das maiores lideranças nacionais entre os profissionais do sexo) do Rio Grande do Sul. Nós vamos partir para as organizações de defesa dos direitos humanos. Nós ficamos sem entender direito. A Constituição diz que todo mundo tem direito de ir e vir e a gente lê no jornal que querem tirar esse direito da prostituta. A gente quer uma resposta. E se tivermos que pedir um hábeas corpus pra andar, a gente vai fazer.

Existem quantas profissionais do sexo em Maringá?

Na rua e incluindo as acompanhantes de executivos e “esposas”, umas oitocentas e cinqüenta.

Você fala de esposas. Há muitas mulheres casadas que estão na prostituição e os maridos não estão sabendo?

Talvez até estejam, mas é mais cômodo manter o casamento, pois o título “esposa” encobre muita coisa.

E a polêmica em torno das profissionais que trabalham na área da Catedral. Faltou diálogo?

Exatamente. Eles dizem que debateram muito o problema, mas na reunião nunca tiveram uma profissional do sexo. Pessoal decide e expõe todo mundo, mas não senta para conversar cara a cara. É diferente quanto eles batem na porta da gente, quando eles passam por aqui para pedir voto. Aí, eles se lembram que a profissional do sexo é cidadã e tem título de eleitor.

Hoje você sustenta sua família?

Hoje eu me mantenho. Meu pai já faleceu e minha mãe mora longe e que ajudo da melhor maneira possível. Tenho uma filha adolescente solteira. Sou mãe de três filhas e avó de cinco netos.

Alguma delas vai se tornar profissional do sexo?

Eu tive a sorte de ter tido três filhas. Duas estão casadas e tenho uma ainda solteira. Nenhuma pendeu pra esse lado. Não é o que eu quero. Mas se uma filha minha se torna profissional do sexo, eu vou sentar com ela e conversar para saber o que a levou as isso. E de qualquer maneira vou apóia-la, não como mãe ou amiga, mas como profissional do sexo.

Qual a maior alegria de sua vida?

É viver cada dia, é batalhar pelo que tenho direito. É chegar aqui, mesmo sem ter nenhum cliente. É saber que sou digna por que não vou na casa de nenhum homem buscá-lo. Ele sabe onde me achar.

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