quinta-feira, 29 de março de 2007

Mães da Plaza de Mayo ainda resistem (2002)

Hebe de Bonafini desafia governo argentino, chama Duhalde de “mafioso”, elogia o MST e apresenta em Maringá a “socialização da maternidade”

Marcelo Bulgarelli

Equipe O DIÁRIO

Só existe uma reparação possível para as famílias dos desaparecidos políticos durante os regimes militares na América Latina: a punição dos assassinos. Nada de indenizações, nada de desculpas, nada de perdões. “A vida vale só a vida. Não a reparação econômica. Quem cobra reparação, se prostitui”, diz alto e em bom tom a revolucionária Hebe de Bonafini, 73 anos, líder de um dos mais respeitados movimentos populares da história mundial, Las Madres de La Plaza de Mayo.

Entre as 100 mulheres mais importantes do mundo contemporâneo, com certeza há de constar o nome de Bonafini. E sua importância é estendida para aquelas mães argentinas que pontualmente, desde 1977, às 15h30 das quintas-feiras, se reúnem na Plaza de Mayo que se localiza na frente da Casa Rosada, a sede do governo argentino, em Buenos Aires.

Com esse respeito, Bonafani e Elsa Manzoti – outra “madre de la Plaza” – foram recebidas nesta semana em Maringá para a abertura da exposição de fotografias sobre a Comuna de Paris, no Teatro Calil Haddad.

Em entrevista a O DIÁRIO, Bonafini definiu a situação atual da Argentina. “Por um lado há muita preocupação pois es-tamos sendo governados por mafiosos. Eduardo Duhalde teve seu nome sempre envolvido com a droga e a prostituição e comandou (enquanto era governador) a pior policia da província de Buenos Aires. Por outro lado, temos a esperança do povo nas ruas, povo mobilizado, povo reclamando, exigindo”.

O MOVIMENTO

O movimento Las Madres de La Plaza de Mayo foi criado em 30 de abril de 1977, em plena a ditadura militar argentina (1976 a 1983) e reúne cerca de 2 mil mulheres que tiveram seus filhos seqüestrados e mortos pelos militares. “Éramos donas de casa, muitas até analfabetas. Não sabíamos de nada, de política, nada. Apesar fomos inocentemente na praça tentar entregar uma carta ao então presidente, general Jorge Rafael Videla, perguntando onde estavam nossos filhos”. A persistência em busca de informações fez com que o regime as chamasse de “las locas” da praça de maio.

Nesses 25 anos de luta, a entidade listou mais de 30 mil pessoas desaparecidas durante o regime militar. Até hoje não obteve qualquer informação sobre esses desaparecidos. Mas isso não as desanimou. Hoje, essas mulheres já idosas lutam contra a injustiça em todo o mundo.

REVOLUCIONÁRIAS

Bonafini diz que as mães, aos poucos, transformaram os filhos em revolucionários. E elas também. Com esse novo posi-cionamento político, elas partiram para a socialização da maternidade. “Há injustiça por todos os lugares. Durante anos nos tornamos internacionalistas e participamos de muitas lutas. Nós aprendemos muito”.

Sendo assim, Bonafini não esconde a admiração pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). “É o movimento mais maravilhoso do mundo. Não há nada igual ou parecido. Me parece tremendamente criativo, muito forte”. Ela considera o MST um exemplo para a América Latina.

DESAPARECIDOS

A líder da Associação das Mães da Praça de Maio esteve várias vezes no Brasil. Em uma dessas visitas, em agosto de 1986, ela criticou o pagamento de indenizações a familiares de vítimas do regime militar. Em todos os lugares Bonafini repetia: “a única reparação possível é a punição dos culpados”. Explicava que era inútil a busca pelos corpos de desaparecidos na América do Sul. “Las madres” não buscam mais os cadáveres. Querem justiça.

Durante a ditadura militar Argentina, Bonafini perdeu dois filhos e de uma nora no final da década de 70. Nessa luta para esclarecer os fatos, ela colocou no mesmo nível dos militares todos os demais governantes que anistiaram torturadores. Justiça, para ela, é a responsabilização dos culpados. Entende que é mais cômodo ao governo pagar indenizações em vez de prender os assassinos.

CONFRONTOS

Denúncias, apoio, solidariedade e confrontos formam a história dessas “locas”. Em 1997, justamente no dia em que as Mães da Praça de Mayo completavam 20 anos de atividade, elas prepararam uma denúncia contra a participação da Igreja Católica durante o período militar. Foram fortes acusações contra o bispo Pío Laghi, núncio apostólico na Argentina entre 1977 e 80. Ele teria sido o responsável pela prisão de Bonafini em 1979.

Naquele mesmo ano, em 1997, o presidente do Peru, Alberto Fujimori, rechaçou a participação das Mães da Praça de Maio nas negociações com o Movimento Revolucionário Tupac Amaru (MRTA). O MRTA mantinha 72 reféns na casa do embaixador japonês em Lima e havia convidado as madres para servir como mediadora nas negociações. Mas nem a proibição de Fujimori impediu a ida de Bonafini à Lima. Na ocasião, ela respondeu ao presidente Fujimori: “estamos acostumadas a lidar com o “não”.

UM NOVO FILHO

Depois os filhos e a nora (também chamada de filha), Bonafini resolveu adotar um ex-presidiário em 1994, Sérgio Schoklender. Dos 43 anos que tinha na época, 14 ele passou na cadeia. Era acusado de ter assassinado os pais.

Schoklender foi preso em 1981. Sob tortura, confessou a autoria do crime que teria cometido em cumplicidade com o irmão, Pablo. Na cadeia, estudou informática, sociologia e conseguiu se formar em direito e psicologia. Em 94 ele liderou um movimento em defesa dos direitos dos presidiários. Foi quando conheceu Bonafini. Ao deixar a prisão, organizou e informatizou o arquivo das madres.

O novo filho de Bonafini (ela rejeita o termo “adotivo”), publicou em 1995, o livro “Inferno e Ressurreição”. O texto mostra o que ele enfrentou nos 14 anos de cadeia ou “5.437 noites de enclau-suramento, dor e esperança”.

A morte dos pais, na verdade, nunca foi esclarecida. O pai, Maurício Schoklender, teria se envolvido na venda ilegal de armas para a Marinha até que o corpo dele foi encontrado junto ao da mulher, Maria Cristina Silva, em um porta-malas. O duplo assassinato ocorreu no dia 30 de maio de 1981. Os corpos apresentavam marcas de golpes na cabeça e de estrangulamento.

Os filhos Sérgio e Pablo, então com 23 e 20 anos, foram apontados como os principais suspeitos. Ao serem presos, Sérgio Schoklender assumiu a culpa e inocentou o irmão, só libertado em 1985. No livro de Schoklender há indicações de que o crime foi cometido pelos serviços de inteligência argentinos. O assassinato teria sido ordenado por um ex-almirante.

LIÇÕES

Hoje, a Associação das Mães da Praça de Maio atua de várias formas. Tem até uma universidade livre e oficialmente não reconhecida, voltada para as ciências humanas.

Depois da socialização da maternidade, elas decidiram não mais utilizar fotos dos filhos nas manifestações. Os nomes deles também foram retirados dos lenços. Aliás, esses lenços que usam nas cabeças representam as fraldas, símbolo do primeiro contato mãe-filho.

A retirada dos nomes foi uma tomada difícil, porém elas entenderam que não são os nomes que fazem as pessoas. É justamente o contrário: “cada desaparecido representa todos”. Certa vez, elas não hesitaram em colocar um milhão de fotos sem nome na avenida de Maio.

É essa maternidade que amedronta o poder e acolhe os injustiçados. “Nós fomos paridas por nossos filhos”, dizem essas revolucionárias.




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Citações de Hebe de Bonafini

“Nós fomos paridas por nossos filhos, porque eles desapareceram e nós nascemos. Não entendíamos nada do que estava acontecendo, víamos em volta tudo o que acontecia: levavam um, outro, assassinavam na rua, mas a gente pensa que conosco nunca vai acontecer...”.

“A desaparição é uma coisa que não se pode explicar. Não dá para explicar nem antes, nem depois, nem em momento nenhum. Esse filho que trabalha, que estuda, que lê, que canta...esse filho um dia não está mais”.

“Aprendemos na prática da rua, em nossa ignorância e inocência. Porque ter ido à Praça de Maio durante uma ditadura tão feroz é um ato de ingenuidade e de ignorância. Não tínhamos noção da ferocidade da ditadura, não sabíamos nada de torturas. Não entendíamos nada do plano econômico; o que era isso de levar, de sequestrar as pessoas para aplicar um plano econômico?”.

“Foi muito difícil nos sustentarmos na praça. Às vezes ficávamos só um minuto... Algumas viajaram 70, 80 km para ficar só um minuto e tínhamos que sair correndo. Mas nos demos conta que a praça era muito importante, que por isso nos perseguiam e foi por isso que continuamos na praça”

“Aos poucos, fomos coletivi-zando a luta, inconscientemente (...) Foi depois de 4 anos que decidimos que tínhamos que socializar a maternidade (...) que tínhamos que nos tornar mães de todos (...) Não é fácil para uma mãe deixar a foto do filho, deixar de colocar o nome dele no lenço branco...Isto foi um processo lento, cada uma fez como e quando pode”.

“E fomos nos dando conta que tínhamos que levar uma batalha muito dura, que era a reivindicação de nossos filhos como revolucionários. Aos que até esse momento, já na democracia, chamavam de ‘terroristas’...”.

“Nossos filhos nos deixaram de herança a luta. As mães que entendemos as lutas revolucionárias de nossos filhos nos tornamos revolucionárias e começamos a levantar as mesmas bandeiras. Já não é somente a luta por justiça, nem apenas pela prisão dos assassinos, senão o compromisso com os companheiros que lutam”.

“Queremos que os estudantes participem das ações das Madres, que marchem cada quinta-feira, que participem dos bloqueios de estrada, que se comprometam, que aprendam o que nossos filhos nos ensinaram (...) Que amem! E que nunca deixem de lutar. Que a luta não começou hoje, vem de longe (...) Que a luta também não é para hoje, nem para nós, é para as próximas gerações”.

Hebe de Bonafini

Mães da Praça de Maio

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