quinta-feira, 29 de março de 2007

Futebol: subjetividade entre razão e paixão

Nem sempre o melhor time é a garantia da vitória; torcedores sofrem de TPP, Tensão Pré-Partida

Marcelo Bulgarelli

Equipe O DIÁRIO

Nem sempre vence o melhor e o importante não é competir. Difícil entender esse esporte, a pátria de chuteiras. Não são apenas chutes, gols ou qualquer regra para definir a grande arena verde. A diferença está basicamente nos detalhes, pois as regras podem ganhar contornos subjetivos. É o orgulho do vencedor, a oportunidade de xingar uma autoridade representada pelo juiz. Isso é uma partida de futebol.

E o futebol não se compreende apenas entre os quatro cantos do campo. A emoção é do torcedor. Seu perfil é de um cidadão comum que tem nesse esporte a chance de ser campeão, de se afirmar, se orgulhar. “Campeão do mundo”, talvez. Numa vida tão curta em um mundo inóspito, perdoa-se a paixão. Ou melhor, tenta-se compreendê-la.

Esse processo introspectivo é observado pelo psicólogo Celso Correa, um apaixonado por esportes com trabalhos desenvolvidos junto aos jogadores. Hoje também é dirigente da Associação Marin-gaense de Futsal (Amafusa). Segundo ele, o torcedor descarrega todas as suas emoções e frustrações, esquecendo que a partida é apenas uma passagem e não um fim.

O sociólogo Fábio Viana Ribeiro, autor de uma dissertação de mestrado sobre futebol e mídia, mostra suas teses sobre a paixão do brasileiro pelo esporte. Pra começar, ele volta ao tempo lembrando o fascínio que as praticas esportivas sempre exerceram sobre o homem. A própria palavra torcedor parece dizer tudo. Aqui, “se torce” a realidade.

IMPONDERÁVEL

O futebol é um esporte peculiar e de fácil improvisação. Basta uma bola qualquer (até uma laranja) e dois objetos para se improvisar uma baliza. É também democrático. Um baixinho e gordinho como Maradona – o revés de qualquer estereotipo de um atleta – pode se tornar um craque.

O que fascina é o imponde-rável. Praticado com os pés, torna-se um esporte mais difícil em relação às outras práticas coletivas. Isso só aumenta a imprecisão de um resultado, segundo Viana. No vôlei ou no basquete, vence sempre a melhor equipe. Já o futebol é uma bola cheia de surpresas.

Mais interessante ainda é que essa imponderabilidade é feita de modo sutil. O futebol tem um jogo, mas muitas das regras estão à parte. Oficialmente, o esporte se baseia em 17 regras outras sub-regras, mas nenhuma delas é absoluta. Exemplo básico é a sempre polêmica lei do impedimento. “A regra do impedimento é pra sacanear o juiz pois pressupõe que ele tenha uma visão de dois locais ao mesmo tempo”, explica.

É apostando nessa subjetividade que o futebol ganha emoção a ponto da própria Fifa não permitir o uso de tecnologia para facilitar a vida do árbitro. Ele pode errar, mas não deve.

E no entanto é preciso vencer. A frase “o importante é competir” desaparece automaticamente na hora em que o jogador verifica o placar.

TENSÃO PRÉ-PARTIDA

Não é à toa que podem ser observados no torcedor os mesmo sintomas da Tensão Pré-Mestrual, a TPM. No caso, uma TPP, Tensão Pré-Partida. Ele fica ansioso, irritado, mal humorado. A psicologia entende esse sofrimento exagerado como uma evasão infantil da personalidade, uma reafirmação da masculinidade.

No Brasil o futebol é o assunto comum. “Quando se quer puxar assunto, fale sobre futebol”, orienta o sociólogo. Assim, quem não acompanha o esporte fica fora do meio social.

É lógico que o sistema político social tem um outro jogo para tratar do assunto. A vitória de uma seleção brasileira pode ser cooptada de várias formas por diferentes regimes políticos. A esquerda brasileira não esquece de como a ditadura militar soube aproveitar do tricampeonato de 1970. Isso sem esquecer do título armado pelo governo argentino em 78.

Esse ufanismo esportivo – sempre percebido pelos regimes políticos desde a 2ª Guerra Mundial - se reflete na forma como os locutores esportivos narram as partidas. É o Estado em jogo. Momento ímpar das nações saírem do mapa para ganhar um “respeito mundial”. “Torci, sofri, mas afinal ganhei do mundo”, escreveu a dupla Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle em uma composição de 1970. É esse o suporte fantasioso de nação ideal.

ÍDOLOS

Por outro lado, Viana tem observado que as mudanças no futebol mundial também estão mudando o perfil do torcedor. Hoje, quem torce já não é tão fanático como antigamente. Percebe que seus ídolos já não são os mesmos. Mudam de clube como se mudassem de roupa. Há pressão dos patrocinadores e muitos atletas jogam com um olho na bola e outro no contrato. A lógica do mercado está mudando o ponto de vista do pessoal da arquibancada. “O torcedor não discute apenas o esporte, mas também os patrocinadores. A torcida está incorporando essas mudanças”, conta Viana.

Um exemplo dessa mudança foi o vazio deixado por Airton Senna na Fórmula 1. Ele representava “o grande vencedor”, sempre compartilhando cada vitória com os brasileiros. Bastava desfilar com a bandeira nacional. Mas a realidade é outra. O ídolo está morto e o único brasileiro com chances na Fórmula 1 se deixa vencer para um companheiro de equipe. Esse é o mercado e as pessoas já não são tão passivas.

JOGADORES

Pelo menos, essa lógica ainda não cabe à seleção brasileira de futebol. Os onze jogadores levam a camisa da nação, de um país onde cada brasileiro – mesmo sem entender de futebol – tem um time de coração. É como um signo, uma identidade. “Quem muda de time está promovendo uma desonra. É algo inconcebível. Há quem diga que só é possível trocar de time até aos 9 anos”, comenta o sociólogo.

E o comportamento dos jogadores? O psicólogo Celso Correa sempre acompanhou atletas de Maringá e sabe como é pressão exercida sobre eles. Infelizmente, a figura do psicólogo é colocada no escanteio. Na Copa de 98, o Brasil contou com escritor de livro de auto-ajuda. “O diferencial é o equilíbrio para suportar as pressões. A nossa seleção é centralizada na figura do técnico. Isso é um erro. Ele fica sem chances de errar”.

Assim, a psicologia e a sociologia tentam entender o que se passa fora e dentro do campo. Enquanto a bola for redonda, ela estará desenhando estranhos mosaicos na enorme tela verde. A paixão – desenfreada ou não – move a esfera, retalha o ar e fere as redes. O gol é um parto necessário e o drible a sua concepção (Mas cá entre nós: por que o Felipão não convocou o Romário?). marcelo@odiario-maringa.com.br



A Pelada

Chico Buarque

Livremente inspirado no Football Association, a pelada é a matriz do futebol sul-americano e, hoje em dia, mais nitidamente, do africano. É praticada, como se sabe, por moleques de pés descalços, no meio da rua, em pirambeira, na linha de trem, dentro do ônibus,

no mangue, na areia fofa, em qualquer terreno pouco confiável.

Em suma, pelada é uma espécie de futebol que se joga pesado o chão.

Neste esporte descampado, todas as linhas são imaginárias ou flutuantes como a linha da água no futebol de praia. E o próprio gol é coisa abstrata. O que conta mesmo, é a bola e o moleque.

O moleque e a bola.

E por bola posso entender, um coco, uma laranja ou um ovo (pois já vi fazerem embaixada com um ovo).

Taí, quando o moleque encara uma bola de couro,

mata a redonda no peito e faz a embaixada com o pé nas costas, enquanto ele corre de testa erguida no gramado, liso feito mármore, na passagem que salta poças por instinto,

É uma elegância.

Mas se a bola de futebol pode ser considerada a sublimação do coco, ou a reabilitação do ovo, ou uma laranja em êxtase, para o peladeiro o campo oficial, às vezes, não passa de um retângulo no chão.

Por isso mesmo, nas horas de folga , nossos profissionais correm atrás dos rachas e do futvôlei como Garrincha largava a chuteira no Maracanã para bater bola em Pau Grande.

É a bola e o moleque.

O moleque e a bola.

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