Psicóloga e sociólogo analisam reality-shows como Big Brother e Casa dos Artistas; programas são considerados como “fábricas que forjam a realidade”, anulando
Marcelo Bulgarelli
Equipe O DIÁRIO
Quanto mais próximo da verdade, tudo mentira. Ratinho não precisa mais recrutar indivíduos em bairros pobres da Grande São Paulo para gravar cenas de falso flagrante em troca de cachê. Vivemos hoje o sucesso dos reality-shows, ou “a vida como ela é”. E não é.
Programas como Casa dos Artistas e Big Brother Brasil estão sendo analisados com atenção por psicólogos e cientistas sociais. Em recente palestra no auditório Hélio Moreira, a psicóloga clínica Ângela Maria Pires Caniato – junto com uma platéia de alunos da área – dissecou todo o conteúdo ideológico embutido nesses reality-shows.
Não foram tratados como meros programas de entretenimento, mas ferramentas que reforçam a manutenção das castas sociais, anulam a solidariedade sem deixar chances para a verdadeira realização do indivíduo: o direito à felicidade.
Para compreender o Big Brother e programas do gênero, é necessário entender como é a relação mídia-indivíduo. Hoje, a angústia do homem contemporâneo está justamente nessa incapacidade de discernimento diante da bateria de informações despejadas diariamente pela mídia. Esse excesso estrangula a capacidade de reflexão, de reação, do senso crítico.
O bombardeio de informação cria uma nova censura pois todas as questões apresentadas ficam no nível da superficialidade. Não há tempo hábil para raciocinar. Freud chamaria isso de regressão primitivas do pensar humano. “É o pensamento irracional tal como a tevê veicula. O excesso impede o raciocínio”, sintetiza Caniato.
SEM VALORES
Portanto, pode-se observar essa anulação do indivíduo proposta pelos reality-shows, considerados como fábricas de forjar a felicidade. Caniato entende os programas como uma distorção da busca do ser humano que tanto lutou pela vida plena, pela realização afetiva e sexual. Nos programas, esses valores são abandonados. Fatores íntimos como desejo e gozo são agora encenados, são farsas.
Ainda assim, o telespec-tador tem a ilusão de interação. Mas ele não possui contato com o outro lado, o mundo da tevê. A interação é abstrata, ilusória. “É um telespectador na sua solidão, na tentativa louca de buscar um companheiro que não conhece ele, personagens que estão representando ou aparentando espontaneidade, como é o caso do Big Brother”, analisa.
COMPETIÇÃO
Em outro programa semelhante, No Limite, também é explicitada a banalização do mundo competitivo da sociedade atual. Essa competi-tividade é apresentada pela mídia como se fosse algo inerente à natureza humana. Dá a idéia de que é normal viver em uma sociedade em que só haverá um vencedor, sem lugar para todos.
E quem será esse vencedor do Big Brother, o herói que vai sair do programa com 500 mil reais? Será, obviamente, aquele disposto a realizar todas as tarefas, o que for mais hábil em todas as áreas, sem limites humanos. Aqui o culto do herói seria também o culto do sofrimento. Mais uma vez a mídia quer mostrar que a exclusão é um processo natural, não um fenômeno de uma sociedade excludente. Valoriza-se a exclusão e não a inclusão.
Um dos fatores que levaria essas pessoas a se exporem diante de milhões de telespec-tadores é o desejo de mostrar algo que elas não tem. Caso contrário, não precisariam dos holofotes do SBT ou da Globo. Aspas para Caniato: “esse é o narcisismo patológico da atualidade. Se há ânsia de querer mostrar, é porque não tem. É o vazio que se transformou a vida das pessoas e a intimidade de cada um”.
“PAREDÃO”
Em suma, a sociedade quer todos em palco comum, escravos de padrões estéticos e ideológicos e não como indivíduos diferentes dos demais. Nesse ínterim, surge a figura do dedo-duro oficializado, representado pelo participante do programa com direito a escolher quem será o próximo adversário a ser julgado pelos telespectadores. É hora do “paredão”.
Ou seja, o dedo-duro entrega para a sociedade todo o processo de exclusão, mas que na verdade já foi feito anteriormente pelo grupo. É como se o dedo-duro denunciasse para a sociedade a “incompetência” do colega. Aqui ocorre mais uma banalização, desta vez, a cultura da exclusão. E ninguém tem vergonha de ser humilhado. Caso tivesse, reagiria.
Sob o ponto de vista afetivo, os reality-shows mostram o trágico do vazio. São homens e mulheres sem compromisso, sem vínculos afetivos. Ninguém se une. A solidariedade é uma falácia e todos passam a aceitar a idéia vendida pelo Big Brother.
Se mudar de canal, percebe-se que o SBT busca a audiência apelando para o sexo. A vulgaridade torna o programa quase um filme pornográfico, descaracterizando o vínculo homem - mulher do prazer amoroso, sensual. Não há espaço para o afago, a sensualidade e os rituais. A sexualidade, também banalizada, é agora algo trivial para ser mostrado publicamente.
Caniato, por fim, explica que vivemos numa sociedade que de fato estimula a competição para separar e depois dominar. Exige a conformação da infelicidade pelo indivíduo. Ele não pode mais se indignar, reagir, pensar. Resta o sofrimento na frente e atrás das câmeras.
SOLIDÃO
Fabio Vianna Ribeiro, professor do Departamento de Ciências Sociais da UEM e doutorando pela PUC (SP), analisa sociologicamente o fenômeno dos reality-shows mostrando que a tevê sempre buscou - desde os anos 50 - ter a aparência da realidade, apesar de tudo ser um “faz de conta”. É como um filme que imita a realidade com a diferença de que o herói nunca morre.
Nos reality-shows, mistura-se a grande farsa com altas doses de cinismo. É um jogo. Perverso. Ribeiro vê a Casa dos Artistas como uma oportunidade para os participantes alavancarem suas carreiras. No Big Brother a crueldade é mais explícita: é tudo ou nada. É melhor enfrentar a humilhação de ser julgado nacionalmente na frente de milhares de telespectadores do que ser apenas um anônimo, um cidadão comum.
Ribeiro faz uma análise da geração que cresceu nos últimos 40 anos junto com a televisão. Chegou um momento em que as as pessoas não se aproximam mais. É o mundo da incomunicabilidade. Não é fácil a aproximação. Daí o sucesso desses programas, um arremedo do que seria a vida real: ter amigos. As salas de bate-papo da internet são uma prova disso.
O sociólogo, porém, não acredita que meios de comunicação de massa tenham o poder de controlar totalmente a vida das pessoas. “Há espaço de negociação entre as pessoas e os meios de comunicação’’, atenua. Mas de todos os ângulos,
a televisão encontrou o meio de enganar mostrando a verdade. Até nos telejornais. Basta tremer a câmera para dar o impacto necessário do flagrante jornalístico. Ou criar “mise-en-scène” em reportagens tratadas como documentais. Se quiser mostrar a verdade, invente uma linguagem. E junto com a linguagem, as pessoas. Já não há mais tempo para pensar.
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